VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Calça cor de rosa

. . Por Unknown, com 0 comentários



Ela não se parecia com qualquer pessoa que eu já tivesse conhecido, era como se ela estivesse desencaixada, desconectada, descontextualizada de tudo ao redor. Eu a olhava, conversávamos, passamos aquele dia praticamente todo juntos, da manhã ao final da tarde, e ela era como uma personagem de um quadro cujo ambiente não faz sentido, como se as cores, as coisas, as pessoas, nada lhe desse significado. Ela e eu tínhamos feito uma prova, dessas de colégio particular, para concessão de bolsas, uma imitação de vestibular, mas para cursar o ensino médio. No fim do dia, em casa, sozinho, tentando entender o que tinha acontecido, mesmo abobado de encantamento eu disse a mim mesmo: “idiota, ela veste uma calça rosa, uma calça rosa de um mundo cor de rosa: você só pode estar de sacanagem, Hugo”. Foi em setembro, dezesseis anos atrás.
Não fomos bem naquela prova, mas, coincidentemente, fomos para o mesmo colégio meses depois. Ela estudava de manhã, eu, à tarde. As aulas de inglês, no entanto, eram fora da grade normal: as minhas, na sexta-feira de manhã, as dela, nas tardes do mesmo dia. Nos encontrávamos nos intervalos de cada período, ou na hora do almoço. Não era marcado, a gente simplesmente se cruzava, parava, conversava um pouco, às vezes se sentava num banco no corredor. Claro, depois de algumas vezes, comecei a repetir os horários, os corredores, os bancos, eu queria encontrá-la sempre, e mais do que nunca às sextas-feiras. Ela não vestia mais aquela calça rosa.
Eu já tinha ouvido falar de borboletas no estômago, o que eu sentia, contudo, estava longe da leveza, da delicadeza do bater das asas, da suave confusão das borboletas. Era como se um passarinho aprendendo a voar estivesse numa caixa de sapatos dentro de mim. Ela falava de maneira despreocupada e, ao mesmo tempo, parecia atenta e séria, como quem está concentrada nas coisas, porém, com naturalidade, sem fazer disso esforço, cansaço. Num instante, sorria, um riso franco, largo, arregalado. Ela conseguia deixar o ar atento e ser invadida com surpresa pelas coisas, sorria seu sorriso como criança que tenta esconder a própria timidez desviando o olhar mas fracassa, deixa escapar o riso.
Nos intervalos das sextas-feiras, bandas de alunos do colégio se apresentavam no pátio. A música, as canções e as bandas eram quase sempre nossos assuntos. Ela e eu tínhamos gostos parecidos. Foi por ela, em silêncio, que dei uma versão para versos que sempre me pareceram esquisitos, “A tempestade que chega/ É da cor dos teus olhos/ Castanhos”. Numa cidade quente e seca, apenas uma tempestade cujo vento levanta e carrega areia e terra poderia fazer com que o céu tivesse a clareza do castanho que os olhos dela tinham. Ela e eu gostávamos de Led Zeppelin, e Pink Floyd não era exatamente do gosto dela. Foi ela quem reparou o quanto eu gostava de coisas lindas, mas muito tristes. Ela também gostava de Guns N' Roses, afinal, chega a ser óbvio agora, ela tinha uma calça rosa.
Desde aqueles dias, mantenho bem a postura de simpatia en passant, todavia, me embaraço em demonstrar sentimentos e entender relações que envolvem alguma cumplicidade. Pra mim, de toda forma, era bem claro que ela não queria nada comigo além daquelas conversas ocasionais sobre as bandas e sobre as matérias e provas. Quando eu conseguia, lia romances que apareciam em artigos no jornal de domingo, referências clássicas, coisas que a professora de literatura citava como fundamentais, mas que não eram cobrados como leitura obrigatória, ou como preparação para o vestibular. Eu nunca falava sobre isso, eu morria de vergonha, ainda mais com ela. No português, ela tinha facilidade com as regras gramaticais que, pra mim, sempre foram um aborrecimento. Eu era bom de matemática também, a ponto de ter feito olimpíadas regionais, ela, saia-se fácil das equações, reações e elementos químicos. Enfim, se tivesse que puxar um assunto novo, falaria de futebol ou de videogame. Ela era do vôlei, mas falar sobre a segunda divisão do estadual de futebol não me parecia a dela. E mesmo tendo um irmão caçula, ela estava longe de estar interessada no FIFA 2002. Ela era um absurdo pra mim. Desconfortável, é verdade: oras, sentir-se uma caixa de sapato vazia movimentada pelo desejo de liberdade e voo coisa boa não poderia ser. Ou era, ou foi. Eu não conseguia entender, e não conseguia fazer nada além do que já acontecia.
Ela queria estudar Medicina, eu, Engenharia Aeronáutica. Mas não sei onde estava Saturno naquela época, quais ciclos ocorriam, quais se fechavam, quais se abriam. Não sei também que planetas habitavam a constelação de Sagitário. Sei apenas que os números, pouco a pouco, começaram a me escapar, e além dos romances eu comecei a ler Salário, Preço e Lucro, A Guerra Civil na França, Ciência e Política – Duas Vocações, e nossos horários mudaram. Nos anos seguintes, não nos encontrávamos mais semanal e regularmente. Vê-la ficou raro, mal nos cumprimentávamos no fim do colegial e, de repente, agora, eu sequer consigo me recordar se a vi nos últimos doze anos. Evidentemente, como sempre, ela pode vestir o que ela quiser, ela pode até continuar gostando de Guns N' Roses, me pergunto somente se, médica ou não, hoje em dia ela ainda tem uma calça cor de rosa.

terça-feira, 9 de maio de 2017

A gente pode balançar o céu?

. . Por Fábio Accardo, com 0 comentários




- Tio, você não tá vendo porque você tá aí parado no chão. O céu tá balançando! A gente tá aqui balançando, e toda vez que a gente balança, a gente balança o céu e o céu balança a gente!

As três meninas se divertiam no balanço do pré-assentamento. E iam cada vez mais alto. Riam e olhavam o céu. Eu sorria e olhava elas. Aquele vai e vem. Será que o céu balançava mesmo? Meu mundo tão parado não conseguia chegar tão longe. As três tinham um consenso. O céu das três balançavam. Não havia lugar para dúvidas.

Em dias de golpe, reformas e crise, a gente se perde nas amarras e sente que o mundo parece girar sozinho. As três pequenas, diferentemente, me fizeram lembrar Chico Science e de Siba, dois cantores pernambucanos, quando disseram "um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar" ou "toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar".

Elas três me lembraram que o mundo não gira sozinho. Ele pode girar pra onde a gente quiser.

...mas não dá pra ver isso enquanto a gente tiver ali, parado no chão.

domingo, 12 de março de 2017

Azeitonas

. . Por Unknown, com 0 comentários



Gosto muito de pão de queijo, porém, já faz mais de um mês que vivo sem qualquer mordiscada, estou sem derivados de leite na minha alimentação. Não tem nada melhor, no meio da tarde, que aquele pãozinho quente com manteiga, é verdade, mas também já entrei no segundo mês sem alimentos que contém glúten. Vontade eu até tenho, de vez em quando, daquela cervejinha, nada pra dizer, meu Deus, estou desesperado. Aprendi isso quando deixei de comer carne, quase quatro anos atrás. Até hoje reconheço o cheiro bom de carne de panela com batatas, por exemplo, no entanto, passou a ser indiferente pra mim, não tenho vontade. Glúten, derivados de leite, e também ovos, eu estou deixando de comer - ao contrário de carne, por opção -, por recomendação médica. Felizmente, por enquanto, ninguém mirou nas azeitonas: imagine só, além de tudo isso, ficar ainda sem azeite, sem azeitonas pretas: ah, não!

Tem uns quatro, cinco meses, estou com dermatite. Passei por três médicos diferentes, fiz uma porção de exames, experimentei medicamentos também diferentes e, diante do diagnóstico inconclusivo - francamente, medicina ocidental, séculos de empiria, testes, avanços tecnológicos, e quando não é virose, é inconclusivo, francamente! -, o mais provável é que eu seja um sujeito atópico. Faz cerca de cinco meses, de repente, misteriosamente, cabrum, meu corpo resolveu deixar de ter alergias respiratórias, meus anticorpos migraram para a derme. Começou nas pernas, foi para as costas, para as mãos, para os pés, pelo corpo todo, são pequenas bolinhas vermelhas, como cravos. Agulham, coçam, irritam. Vieram também manchas vermelhas, sensação de arrepio, pele ressecada. Ou seja, era mais legal ter umas crises de bronquite, asma, rinite, e viver por aí espirrando.

Ao longo desses meses, minha relação com meu próprio corpo tem mudado. Antes, entendia eu e meu corpo como uma viagem de avião. Minha primeira viagem, quando eu tinha uns cinco, seis anos, foi quando meu pai presenteou minha mãe com um voo pela cidade, num monomotor pequenino. Sentado naquela poltrona desproporcional pro meu corpo de então, o cinto afivelado, aquela geringonça chacoalhava no alto, saltitava: eu flutuava entre a poltrona e o cinto. Assim eu me entendia, durante esses anos todos antes da dermatite, eu flutuava dentro de meu próprio corpo.

Dos últimos meses pra cá, diante da irritação na pele, da coceira, tem sido como se a todo momento eu quisesse me desfazer de mim mesmo. Como se estivesse me despindo, coçando, retirando a vestimenta que minha própria pele me dá. A sensação de flutuar dentro de meu próprio corpo deu lugar a uma inquietação centrífuga - meu Deus, que metáfora tenebrosa, Hugo -, sou eu uma melancia quadrada. Sim, que ideia ridícula tiveram, algum dia, colocar uma melancia para crescer em um cubo de vidro. É como se eu-melancia quisesse quebrar o cubo que é minha pele, ressecada, vermelha, empolada.

Lembrei das azeitonas porque, em meio às coisas que tenho retirado da minha alimentação, as frutinhas das oliveiras nem sempre estiveram presentes, e tem relação com o sentimento infantil de como entendia meu corpo e eu. Só voltei a comer azeitonas perto dos vinte anos, cerca de dez anos atrás. Senhora minha mãe é quem conta que eu comia muitas azeitonas quando pequeno, de que comia especialmente com meu avô materno, o Gordo. Ele pegava um prato, sentava para comer, para almoçar, para jantar, na mesa da cozinha, eu vinha, subia no colo dele, olhava o prato e pegava as azeitonas. Ora, entendi, depois de muito ouvir essa história das azeitonas com meu avô, que um dia o velho Gordinho se foi, não me avisaram, não me contaram, não me disseram nada, se eu comia azeitonas especialmente no prato dele, na ausência dele, ué, inconscientemente, não fazia sentido continuar comendo.

Da morte de meu avô a eu redescobrir as azeitonas foram mais ou menos quinze anos. Do meu corpo pedindo para não comer nada que contenha glúten, ovos e leite - espero que tenha parado por aí -, nesses quatro, cinco meses, eu só consigo pensar em qual é o luto que eu estou elaborando, quais as perdas. Talvez seja luto sobre mim mesmo.


   

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Humans of minha rua

. . Por Unknown, com 0 comentários



Tem uma dupla de senhoras que vive no quarteirão de casa. Uma delas vive numa casa mais acima, outra, mais abaixo da minha. Quando saio de casa, é comum encontrá-las pela calçada, ora uma está na casa da outra, ora a outra está na casa da uma. São duas velhinhas muito amigas. Quando estou em casa, muitas vezes estou na mesa da garagem com o computador, com um livro, ou simplesmente fazendo vários nada olhando para o vazio - sou muito bom nisso, aliás -, é comum que uma delas, ou ambas, cruzem a minha calçada. Não importa o momento, todas as vezes, irresistivelmente, eu as cumprimento de maneira efusiva, separo meu melhor sorriso, meu aceno mais empolgado, minha felicidade mais contagiante e dou bom dia, boa tarde, boa noite. Todas as vezes, rigorosamente, elas me olham nos olhos, às vezes olham uma para a outra, e não reagem em relação a mim, me ignoram solenemente. 
Temos uma sintonia perfeita.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O micaretômano

. . Por Unknown, com 0 comentários



Lá vem ele, de tênis e sem meia, bermudão tactel, na mão leva um copo de plástico, uma latinha, ou uma long neck, que seja. Veste ainda óculos escuros, de dia, de noite, óculos escuros na chuva, não importa, óculos escuros. Está sem camisa, ou com o abadá alaranjado do bloco da vez: o obcecado por micaretas anseia pela chegada do Carnaval. Depois de arrastar o ano atrás de qualquer trio elétrico fora de época, mal acabou o Réveillon e ele já substituiu a piada do pavê pela pergunta, e o Carnaval hein? O micaretômano não sabe se vai para uma praia, se prefere uma cachoeira por perto durante o dia, numa cidadezinha do interior mas com carnaval de rua. Ele não sabe se se manda de uma vez para o Rio de Janeiro, não sabe se desfila, se fica por São Paulo, na Vila Madalena, se desce para o centrão, não sabe. Não sabe se faz uma viagem para a Bahia, para Olinda, para Recife, se corre atrás do trio. Enquanto decide, o micaretômano cantarola marchinhas antigas, ♪♫ Hey, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí ♪♫ e busca pelos hits do verão, pela música que estiverem apostando como “o refrão do próximo Carnaval”. Oras, o micaretômano não pode ficar de fora!


Não, o micaretômano não existe, é apenas uma tentativa de chamar a atenção. Escolhi o Carnaval porque é uma festa, poderia ter sido qualquer outra. Caricaturizo uma personagem e falo do clima de uma festa como Carnaval porque há, na linguagem dessa festa, algo que de modo algum é engraçado, que não é piada, e que precisa ser discutido. Festa que é encarada como o fim de uma guerra, a guerra do cotidiano, das relações formais, obrigatórias, excessivamente cerimoniosas, por vezes apenas de aparências, ou indesejáveis. Festa então para inverter os papéis sociais. Porém, uma festa para a qual eu pergunto se não aprofunda os mesmos papéis sociais quando se trata dos afetos.


Porque os acontecimentos são excessivamente normais quando estamos falando sobre isso. E normal aqui está dilatado em seus sentidos, já que, neste âmbito, vão dos olhares aos atos de extrema violência para consumação do intercurso sexual. É machismo, é cultura do estupro: é normal porque vai do banal às bordas do inimaginável. É normal porque enche as páginas dos jornais cotidianamente há décadas, é histórico. No entanto, infelizmente, me pego pensando se não presto atenção nisso apenas no calor da indignação frente às notícias que, por vezes, nos comunicam o extremo como loucura. Não que não sejam frutos da insanidade. Mas chamo a atenção aqui, por outro lado, para uma loucura que se repete consistente e diariamente mundo afora. Não são casos, são estatísticas. Quantos são os casos de violência contra mulher, no Brasil, diariamente? É aí que o normal e o naturalizado se misturam, e o que é estarrecedor transforma-se em indiferente: e isso sim é loucura.


Se lembro o extremo da violência contra a mulher, porém, é, mais uma vez, para falar daquilo que aparentemente parece banal, e que me parece ao meu, ao nosso alcance. É Carnaval, é só uma festa. Não, não é. E, ironicamente, levo no título deste texto, o obcecado por micaretas, a personagem em questão, the kissing sailor. Porque não consigo falar desses atos extremos, e nas Ciências Sociais, na Psicologia Social, nas Políticas Públicas, enfim, nas Humanidades e fora dela, há gente mais capacitada falando sobre isso. Minha reflexão pega a borda da colcha que recobre a expressão cultura do estupro, e como estudante de antropologia, me pergunto pelas práticas triviais, elementares, que se estendem tanto, culturalmente, pra também se apresentarem nas estatísticas de violência brutal contra mulher. Tomo então o beijo do marinheiro, algo que eu só consigo enxergar nos dias de hoje durante o Carnaval, e, como uma figura bastante estereotipada que caminha por aí, o micaretômano, ele é somente uma maneira que encontrei pra dizer que a comparação entre os tempos não é descabida.


Seria quase um exercício anacrônico, já que, do ponto de vista atual, interrogo uma imagem de 1945 para que ela possa nos dizer não só sobre os E.U.A. que assistia ao fim da II Guerra Mundial, mas, sobretudo, sobre as relações sociais de gênero do nosso mundo contemporâneo. É inegável, claro, que houve grandes transformações nesses universos, durante o transcorrer desses anos. A pergunta que fica, no entanto, é se os princípios que organizavam aquelas relações sociais mudaram tanto assim em relação aos dias de hoje. Minha resposta é não.


Pois é pra você que escrevo, amigão, como quem escreve para um amigo mesmo. Por mais que amigão soe conversa de gente mais velha em relação aos mais jovens, não, amigo, você pode ser mais velho do que eu, ou mais novo, não importa. Além disso, você também pode ser minha amiga, mulheres também são machistas. Você pode ser hétero, você pode ser gay, gays também podem ser misóginos. Você pode ser lésbica, e lésbicas igualmente assumem comportamentos machistas. Você pode ser assexuado: você está vivo por aí mantendo as relações sociais que nos possibilitam acessar à internet, abrir este texto on line, parar e ler. Não se está fora do mundo social, não se está fora do machismo, assim como não se está fora da política, do racismo. Enfim, digo isso para que não tome como pessoal, cara. Enquanto escrevo, há um espelho atrás do meu computador, é evidente que eu também estou falando sobre mim, é impossível que não estivesse, estou falando para mim. Estou aqui pensando minha vida afetiva, aquela garota que primeiro beijei ainda adolescente, ela sorrindo me questionando se eu ia protocolar em cartório, em três vias, o pedido de beijo que eu havia lhe feito um segundo antes. Revivo o desacerto daquela vez em que uma garota apontou pra mim saindo do restaurante entre uns amigos, e só pra mim confiou baixinho, “vou dormir na sua casa, na sua cama”. Repenso cada vez que confundi uma amizade tão bonita como algo mais, e errei, e insisti, e errei, e tudo se perdeu. Volto aos encontros tão felizes que tive, mas que por razões que eu nunca soube, não conseguimos apenas manter contato, senão como amigos, como colegas que gostam de um mesmo diretor de cinema. Talvez tenha sido eu, fundamentalmente eu. Cada olhar, mesmo que desinteressado, de alguém que vive no mundo da Lua. Cada festa, cada dança, cada porre - por que essa associação? Cada beijo, cada transa, cada toque na mão, no braço, nos ombros, mesmo quando não queria nada além de demonstrar alguma cumplicidade. Enfim, cada pequeno gesto que fiz ao longo desses anos de vida afetiva, o que eles puderam representar? Mas e você, cara, em que pé anda sua reflexão sobre seus afetos? [1].






Era 14 de agosto de 1945 e chegava o anúncio de rendimento do Japão, a Segunda Guerra Mundial acabara. Talvez um dos conflitos mais difundidos pela comunicação, e destrutivo em termos históricos, já registrados, dezenas de milhões de pessoas haviam morrido. Pessoas e nações pelo mundo todo se sensibilizaram de alguma forma pelo horror vivido. Diante daqueles anos, o fim da guerra desencadeou uma excitação não antes vista: paradas espontâneas, pessoas cantando, dançando nas ruas e abraços e beijos desinibidos, incluindo por estranhos totais. Era como se o mundo pudesse respirar novamente. Aquele 14 de agosto ficou conhecido como "o dia mais feliz da história dos EUA". [2]


Foi neste dia, nesse contexto que um marinheiro viu uma enfermeira de branco, caminhou até ela e, sem dizer oi, agarrou-a, inclinou-a para trás e a beijou. A enfermeira não conhecia o marinheiro, ela não havia o convidado a qualquer abordagem. Nada disso, aparentemente, importou, naquele momento, e durante todas estas décadas. O homem da Marinha a beijou de qualquer jeito, segurou-a por alguns segundos e, antes de soltá-la, muitas pessoas cercaram o casal. Naquela multidão alguém tinha uma câmera, era Alfred Eisenstaedt, da revista Life. As fotos correram o mundo, durante décadas se falou quem seria aquele casal. Durante décadas se investigou a identidade, quem eram, o que fizeram, qual foi o destino daquele instante capturado. O marinheiro era o pai do micaretômano.


O casal da foto era Greta Zimmer Friedman e George Mendonsa. Depois do beijo, se separaram, só foram se reencontrar em 2012, após intensa pesquisa para confirmação, para celebração daquela imagem, daquela data. Greta diz, assegura que não queria o beijo, que foi surpreendida. A sequência das fotos intui, de fato, pela posição dos braços, ela não parece entregue, à vontade, desejante, ela não parece querer estar ali. É um gesto pequeno, um beijo, alguns instantes, algo sem importância para a vida de ambos, Mendonsa seguiu sua vida, Friedman também. Mas por que celebrar um gesto pequeno, sua dúvida, sua incerteza, seu aparente e confirmado contragosto, como vitória, como triunfo, como alegria, como carinho? Greta disse que não esperava, que não queria, mas também não assume completamente uma posição de vítima, apesar de sua imagem encenar a desigualdade, ali, quase física, e tão histórica, a desigualdade de gênero: as mulheres, no nosso mundo, devem se submeter ao desejo dos homens [3]. Ironicamente, só consigo imaginar que o horror de um Guerra, que nada mais é do que um arranjo coletivo voltado ao aniquilamento, à destruição, à imposição da força, só poderia mesmo festejar, com seu final, um pequeno gesto, ainda que de alegria, também de violência. Somente desse modo consigo compreender o significado da expressão “cultura da violência”: como a palavra cultura, tão próxima de criatividade, pode estar próxima de uma ação violenta; compreender ainda a extensão e a profundidade das relações que a expressão composta abarca: um gesto de afeto, a desigualdade de gênero carregada, no caso da icônica foto, em meio ao fim de uma guerra.


Sinto que é este o poder das fotos, se nos ensinam um novo código, uma época, se ilustram, representam, as fotos também modificam e ampliam nossas ideias sobre o que olhar, sobre o que temos o direito de observar e, ao mesmo tempo, sobre o que ocultam, sobre o que podem revelar. São uma gramática, uma ética do olhar. A câmera é continuidade da consciência, e uma fotografia faz um movimento de apropriar-se daquilo que é capturado. Um fotografia comunica uma determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento, ao poder. Ora, as imagens mobilizam a consciência por estarem ligadas a determinada situação histórica, como uma Guerra. Mas os atributos, os sentidos das fotos podem a ser engolidos pelo sentimento dessa época, pelos acontecimentos específicos de uma realidade histórica. E a distância estética parece inserir-se, então, na própria experiência de olhar as fotos, não apenas de forma imediata, instantânea, porém, com o passar do tempo. Já que, se uma única foto somente não é capaz de compreender uma situação, ela pode sugerir os caminhos. [4]


Caminhos ainda para entender as relações que estabelecemos com as pessoas ao nosso redor, seja cotidianamente, seja numa festa, seja no Carnaval. Conflitos diários, disputas pessoais, assistimos a toda hora, incessantemente também, ano após ano, novas, repaginadas guerras, são criados novos inimigos, guerras pelo mundo a todo instante. O marinheiro ou o micaretômano seguramente estão, estarão por aí. É com eles, com personagens como essas que se pode encarar as disputas que elegem um presidente, que reverberam em atos de extrema violência, ou que simplesmente alimentam constrangimentos, pequenas submissões, mas nem por isso questões menores, são do dia a dia. Se não há estratégia ou tática pronta, definida, se não se sabe a melhor forma de encará-los, de transformar essas relações, resta manter-se diante disso, questionando imagens, gestos, celebrações, seguir tematizando, falando, repetindo, repetindo, quem sabe, até que fique diferente [5].



Notas.


[1] Livremente inspirado em Machista em Recuperação, de Caio Moretto.

[2] The kissing sailor: the mystery behind the photo that ended World War II. Lawrence Verria and George Galdorisi.

[3] ver item "As relações perigosas e o pilar da sociedade", do artigo "Bolero de machão só se canta na prisão", de Mariza Correa.

[4] Sobre fotografia – ensaios. Susan Sontag.

[5] Uma didática da invenção. Manoel de Barros.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Release

. . Por Unknown, com 0 comentários





Quando eu era mais novo, toda vez que chegava Release no toca-cd, no micro sistem, ou, depois, no diskman, no final de Ten, eu parava. Até no mp3, no carro, no random que fosse, entrava a vinheta da música e eu ia logo pra tecla > pulando. Tá lá no documentário do Cameron Crowe, Pearl Jam - Twenty, muita gente diz e o próprio Vedder reconhece, assim que escreve e as primeiras vezes em que interpreta a canção o transtornam. Dá pra ver nas primeiras gravações, nos primeiros shows, Release não aparece tanto, e quando aparece é um Eddie sombrio quem canta. Alguém vai dizer, mas também é um dramático que só o vocalista. É. Ainda assim, não tem muito eu-lírico, distanciamento, ou estranhamento no processo criativo, parece, tem é um grande mal resolvido, uma dor na letra. Faz pouco soube que o álbum é pensado a partir de Quadrophenia, do The Who, uma ópera rock toda esquisita. Os álbuns se parecem, é só reparar nas letras, intertextualidades, são sons diferentes, mas há sim um diálogo.

Não gosto muito do lance de “pai” nas coisas da vida. Tem aquela ideia vertical, do Uno, o Rei, que às vezes se transforma em “fundador”, “origem”, e quase sempre como símbolo de autoridade. Taí, como símbolo né, não apenas enquanto pessoa. Pode não ser pai, pode ser mãe, pode ser o irmão da mãe, pode ser só irmão, tio, tia, vizinho, amigo, namorada, companheiro, etc. “Pai” é um símbolo de autoridade. Deve ser por isso o meu contragosto: pelo que me lembro, quando meu próprio pai se investiu de autoridade em relação a mim, putz, não foi legal. Brigamos. Isso da adolescência pra cá, porque durante a infância, e a maior parte do tempo, até hoje, não vejo meu pai como uma figura de autoridade. Ele nunca me bateu, por exemplo, por mais que autoridade e violência não estejam diretamente conectadas ao físico. Às vezes a gente se esquece disso, infelizmente. Me lembro de ver meu pai uma única vez transtornado discutindo com um homem na portaria do zoológico de Ribeirão Preto, eu tinha uns cinco anos, ali ele parecia capaz de violência física. Era como se aquele não fosse meu pai, eu chorava e me levaram embora.

Meu pai é uma companhia gostosa, presente, carinhosa, atencioso. Mas num intervalo grande que está na minha memória, cujo início é aos 4-5 anos, quando começa o lance das cirurgias na orelha, há uma quebra em relação ao meu pai, uma transformação. Minhas primeiras lembranças de vida são em corredores de hospital, no HC da USP, em Ribeirão Preto, no HC da UNICAMP, e em uma clínica em São Paulo. A primeira cirurgia só foi acontecer aos 8 anos, em Campinas, e foram até os 12-13 anos. Meu pai muda radicalmente aí no meio. Depois de uma das cirurgias, eu não me recuperei, tive uma infecção, meu corpo rejeitou a cartilagem de uma das costelas que havia ido pra orelha. Foram três intervenções em vinte dias e um infeliz acaso, um mau encontro.

Meu pai e duas de suas irmãs desde então não se falam. Difícil lembrar onde eu estava semana passada, do que disse e se ainda concordo com meu próprio seminário sobre um livro dias atrás: quase vinte anos depois não me parece possível que alguém saiba o que aconteceu, quem disse o que pra quem, quem fez o quê, quem primeiro disse o que disse e porquê. Meu pai acreditou que estivesse perdendo o primogênito que durante onze anos esperou ter – em sua concepção ideal de família –, e assistiu à emergência de seus rancores, coisas mal resolvidas, conflitos, falas, decisões, relacionamentos afetivos, tudo isso ao longo dos então quase cinquenta anos de sua vida. A partir daí, oscilava, às vezes retirava-se das relações que tinha estabelecido até aquele momento, retirava-se do passado à luz do presente. Observador privilegiado de sua vida, como todos nós, contando-a então insistentemente, vestiu a coroa do Monarca, transformou seu passado num reino sob seu domínio. Sobre coisas ruins, tristes, era como se ele não tivesse feito escolhas, como se ele mesmo não tivesse agência em cada uma das relações que viveu: os outros, a corte era responsável, era como se ele apenas tivesse assistido, incrédulo. Às vezes, por outro lado, para coisas boas, raras, mas felizes, era como se somente ele tivesse feito, era ele, como bom Provedor, quem tomou as decisões. Principalmente, meu pai ao mesmo tempo vestiu a toga do Magistrado, transformou decisões erradas em julgamentos morais intransponíveis, bateu o martelo repetidas vezes, personalizou erros em pessoas, cristalizou todos, sentenciou-os, e também transferiu tudo isso a algumas outras pessoas próximas. E, sim, de alguma forma, ainda me sinto culpado por tudo isso.

Acho que foi aí que conheci o que era autoridade, e não exatamente a do meu pai. Naquele homem aparecia uma autoridade sombria, amarga, lateral, eventual ao longo das semanas, repetitiva em sua aparição, previsível em seu acontecimento. Daquele momento em diante, se hoje aparece faísca disso, sou capaz de apostar a relação que ele estabelecerá, a lembrança seguinte que contará. De certa forma, então, não consigo cantar Oh, Dear Dad, Release Me, porque ali ficou claro que autoridade, em casa, sobretudo, era minha mãe. Além disso, naqueles anos, eu também tive que forjar alguma autoridade em relação a tudo isso. Mesmo antes, meu pai nunca foi alguém que falasse com autoridade, é uma piada nossa até hoje: tudo que ele precisa, quando necessita investir-se de autoridade, seja pra dar bronca nos filhos, seja pra contar alguma coisa da qual ele vai se gabar, é batata, meu pai chama minha mãe. É hilário. Quem se dá bem com isso, tinha que ser, claro, é minha irmã, ela samba na cara do bobo do meu pai. Mas, ali, naqueles anos dessa confusão, também aprendi com minha mãe o que é segurar a onda: ela, muito mais do que eu.

Só tem uma onda que minha mãe não segura até hoje. Já conversamos algumas vezes, mas ela dá de ombros. É comigo. Quando eu nasci, veio uma concha no lugar da orelha esquerda, e o que no ultra som era a mão no rosto, no parto, percebeu-se que eu protegia o lado esquerdo. Eu chorava, a boca virava: má formação crânio-facial. Exames após exames, consultas após consultas, e o interrogatório era sobre minha mãe: que medicamentos a senhora tomou?; a senhora usa alguma tipo de droga?; a senhora tem alguma doença sexual? Não importa se criança, jovem ou idoso, quem parar ao meu lado distraído reparando que uma orelha não é como a outra, ah, se minha mãe estiver por perto esse alguém vai ouvir, “algum problema, que que foi, nunca viu?!”. O que pro meu pai é senso de proteção, em relação aos filhos, pra minha mãe se confunde com belicismo.

Já interrompi minha mãe algumas vezes nessas situações em que sou observado por curiosidade, já conversei em outros momentos sobre isso, porém, não resolveu. Entendi que é ela o eu-lírico de Blood. Minha mãe está dizendo, faz quase trinta anos, Spin me round, roll me over, fuckin' circus, Stab it down, one way needle, pulled so slowly, Drains and spills, soaks the pages, fills their sponges, It's my blood. "It's my blood", minha mãe repete. Não é exatamente como se ela se sentisse culpada, porque os versos em que Vedder ironiza, paint Ed big, turn Ed into, one of my enemies, pra mim, são minha mãe dizendo, paint Hugo big, turn Hugo into, one of my enemies.

Algumas pessoas já chamaram atenção pro fato de eu falar bastante sobre meu pai. Às vezes eu sorrio. Meu pai gosta de dizer que eu sou um velho rabugento, chato e reclamão feito um dos avôs de minha mãe. É que meu pai ainda não conviveu com o Adriano. Mas quando o assunto é definição de pessoa pelas linhagens familiares, é ponto passivo que tenho a ironia, a pentelhação, a sem noçãozice, o espírito circense e quase irresponsável, enfim, o humor de minha mãe. De algum modo, então, não só quando estou aqui falando do meu pai, no entanto, quase sempre por aí afora, as hastes que sustentam as lentes dos meus óculos são minha mãe. Como da infância até a adolescência eu passei por algumas cirurgias, às vezes três num ano, entre uma recuperação e outra cirurgia o tempo era curto. Fiquei muito tempo em casa, com minha mãe, com minha irmã, com minha tia também, com minha avó. Muito antes de ver um filme do Almodóvar eu já tinha conhecido um pouco desse universo. Ainda hoje, não me sinto exatamente bem em ambientes considerados masculinos.

Foi só com minha mãe também que aprendi o que é alguma autonomia. Ela nunca comprou a encrenca do meu pai com o passado dele. Não tomou a relação de meu pai com as irmãs dele pela relação dela mesma com as cunhadas. Foi aos casamentos dos sobrinhos, nesses anos todos, convidada, foi aos aniversários da sogra: meu pai, não. Se meu pai entrava em monólogo sobre seu passado e pedia interlocução, reconhecimento, ela negava, e negava que nós, minha irmã e eu, assumíssemos as relações e associações que ele estabelecia. Quem os vê por aí, sempre de mãos dadas, feito os velhinhos de Up – Altas Aventuras, ou mesmo o casal de Amor, o filme de Haneke, quem assiste a minha mãe contando piada, meu pai não entendendo mas rindo, ou meu pai contando uma história longa e cheia de detalhes que só minha mãe presta atenção, não, quem os vê não se dá conta de que há desentendimentos e diferenças que fortalecem alianças.

Já saindo do período das cirurgias, quando meu pai me ensinou a jogar tênis, um pouco pra que ele também voltasse a jogar, me lembro de como ambos, minha mãe e meu pai, encaravam uma partida de maneiras diferentes. Comigo, meu pai não competia, ele não levantava a bola, ou simplesmente a passava pro outro lado da quadra. Não era assim. Se ele batia firme, era pra que o jogo continuasse. Meu pai dava ritmo, gostava de um jogo de trocas de bola. Minha mãe, tsc, não. Hoje, me lembrando disso, e com algum exagero, evidentemente, era como se estivesse Serena Williams do outro lado da rede distribuindo pancadas enquanto habitava o centro da quadra. A cada estalido da bola na raquete de minha mãe, agora, era como se ela estivesse dizendo Still I Rise. Tantos anos depois, já está mais claro, talvez a única coisa que herdei foi mesmo o humor, careço dessa força.

Ao mesmo tempo, quando o assunto é “a cara de quem”, é meio óbvio que puxei minha mãe. Outro dia, porém, eu olhava meu pai sentado, grisalho, assistindo à TV na casa deles e, mais de trinta anos mais velho, eu me vi fisicamente naquele homem. Ele foi falar alguma coisa, foi se auto-elogiar, minha mãe logo cortou sarcasticamente, tei, pah, todos rimos. Tendo saído dali cerca de 12 anos atrás, morado em cidades diferentes e com dezenas de pessoas, poucas vezes encontro, como naquele momento, a sensação de me sentir em casa.

Meu pai, naquelas semanas, naqueles meses, anos atrás, e mesmo ao longo desses muitos anos, às vezes, me parece Tadeo Isidoro. Aquele que, por longa e complicada que seja uma jornada, pode compreender, pode descobrir, de uma vez por todas, quem é, pode saber a realidade de si próprio, sua natureza, pode conhecer seu destino e o de outras pessoas a partir de momentos únicos, através apenas de alguns instantes. Minha mãe, não, ao longo desses anos parece dizer que seu reflexo côncavo no vidro da lanchonete talvez seja dela uma imagem mais fiel que a lembrança que lhe guardam colegas do colégio, mais exata que a imagem que ela mesma figura de si própria (rf. O Brinco, Ana Martins Marques). E falando assim parece fácil: quero ver ser filho deles, né Helena.

Se uma dor, porque Vedder ainda aparece grave cantando Release, meio blue, desde o lançamento do álbum Ten, em 1991, até os anos 2010 ... vinte e cinco anos depois, quando vi essa apresentação de agosto de 2016 bateu certo alívio, algum otimismo. Logo no início, I see the birds in the rain – ê breguice –, Eddie aparece sorrindo. Lá no meio de um ôôÔôôôÔ novamente, sorrindo. Termina a canção e ele segue sorrindo. É só mais uma canção, que dia bonito, como tem gente, que legal, é o que ele parece dizer. Há, naquele senhor grisalho, sentado, assistindo à TV, ainda aquele homem carinhoso desde minha infância, há também um ar desanuviado, leve, quase adolescente, que eu mesmo não sei se reconheço: talvez tenha desaparecido aquele sombrio e rancoroso – oh, dear dad, feliz aniversário.









segunda-feira, 11 de julho de 2016

Água que nunca tem sono

. . Por Unknown, com 2 comentários




"Me preparei pra isso, ao longo desses anos todos com vocês, mas tem sido difícil...", meu pai me repetiu, "me preparei pra isso, mas tem sido difícil pra mim...", soluçava. Me lembrei disso, porque nesta semana véinho meu pai decidiu que não vai mais andar de moto. Desde que me conheço por gente – ainda não tinha me encontrado enquanto brócolis –, mesmo sendo mecânico de automóveis, meu pai anda de moto. Ele dirige carro, claro, apenas não gosta de enfrentar trânsito dentro de um. Ao consultar os álbuns de família, se vê que assim que nasci ele tinha uma CB 400 enorme para os anos 1980. Tem foto minha na CB vermelha. Senhora minha mãe gosta de dizer que eu sou meio lelé porque levei um tombo daquela moto. Brincando na garagem, dei com a cabeça no chão ainda pequeno. Acabara de aprender a andar e escalar coisas, fiz isso naquela moto que, ainda hoje, para minha lembrança, era um Everest e, ploft.


A chegada da inconveniente da minha irmã – óbvio, tinha que ser –, deu fim na CB vermelha. As finanças apertaram – faltou àquela aula de Economia, em vez de investimento, preferiu arrocho – e meu pai decidiu ficar somente com a CG 125 azul do dia a dia, 1977, a famosa moto Peixinho. Porém, trinta e oito anos depois de fabricada, sendo roubada pela segunda vez, a Peixinho não foi mais encontrada. Véinho meu pai deu sorte, pois no início do ano passado, antes de levarem a Peixinho, ele tinha tirado uma moto nova. Não sei o nome, a marca, mas de lá pra cá ele se achava horrores com aquela moto nova, comprou até um outro capacete, fazia pose pra subir, pose pra dirigir. Meu pai é um exibido, e, se deu sorte uma vez, foi uma vez, porque ele é azarado pra cacete: roubaram a moto nova dele faz dois meses. Quatro assaltantes entraram na casa dos meus pais, os mantiveram como reféns e fizeram um enxoval. Levaram ventilador, micro-ondas, caixa de ferramentas, R$20,00 e uma televisão 14'. "Casa errada, casa errada", senhora minha mãe conta, os bandidos repetiam alguns minutos depois de vasculharem a casa. Mas também levaram a moto e o carro dos meus pais. O carro, no dia seguinte, foi abandonado, a moto, não. De todo modo, tinha seguro the new La Poderosa.


Cobrei ele algumas vezes nesse período: e aí, cadê a moto, não foi tirar ainda? Ah, não, to vendo o modelo, ele dizia. Da última vez que estive em casa, ele até disse o modelo, falou que deixou reservado na concessionária e esperava receber um dinheiro pra pagar a documentação. Me contava isso no sofá, eu estava deitado no colo dele, a gente assistia à televisão. Ê laiá hein, comichão, não para quieto, falei pra ele, que se mexia muito ali deitado. Ele sorriu amarelo. Depois descobrimos que não era inquietação, eram espasmos na mão e na perna. As idas e vindas ao médico nas últimas semanas e a resposta dele parecem apontar que ele passou pelo efeito colateral de um novo remédio para o colesterol. Tremores, movimentos involuntários nos membros. Parou de dirigir por alguns dias, a mão corria sozinha sobre a mesa enquanto almoçávamos, o pé dava tchauzinho com a perna cruzada. Um mês depois, ao que parece, ele está recuperado, quase sem sinal desses sintomas.


Nesta semana, agora, veio a decisão, ele nos disse que não quer mais uma moto, que vai usar o dinheiro do seguro, da moto roubada, pra trocar de carro. Entre a desconfiança – meu pai é cheio de conversa fiada, a vida toda de enrolação, de histórias, não dá pra acreditar nele de imediato, só sendo muito ingênuo – e a surpresa, eu recebi a notícia e, ansioso, comecei a pensar que ele já sentia os tremores e espasmos nos membros há muito tempo, tendo escondido enquanto pode. Afinal, é do meu pai também dar perdido no tempo. Ele estende as coisas, vive tudo demoradamente, vive as coisas duas vezes, revive o passado continuamente, é como se dilatasse o tempo. O relógio segue um segundo após o outro, normalmente, mas meu pai altera a percepção das coisas na vida. Ele chora.


Os médicos disseram que não, que foi mesmo efeito colateral do remédio, e que agora, de fato, meu pai não está de historinha, que o remédio foi embora. A decisão é dele, véinho meu pai não quer mais uma moto, disse, porque sente que não tem mais concentração para o trânsito sobre uma moto. “Difícil pra mim” foi o que me ocorreu, porque, sim, é difícil pra mim também, sempre associei meu pai a uma moto, à CB vermelha, àquela velha CG 125 azul, a Peixinho, já sem espelhos, sem lanterna, com o banco rasgado, cheia de penduricalhos, folclórica, ou à nova, que potencializou o exibicionismo do velho. Como assim, pai, sem moto?


Sem moto, Hugo. Sem choro, também. Meu pai, que fala chorando, tomou essa decisão e tudo me parece seco, direto, claro. Véinho meu pai, aquele que repetia pra mim ano passado, soluçando, às lágrimas, “me preparei pra isso, ao longo desses anos com vocês, mas tem sido difícil...”. Levamos meses com ele no telefone, minha irmã e eu, mesmo ao chegar para uma visita num fim de semana, ou ao vir embora, ele chorava, chorava, chorava. No aniversário dele, ano passado, eu no trabalho, no meio da tarde, liguei, ele trocou duas, três palavras, perdeu a voz, chorou. Senhora minha mãe caia na gargalhada. Entre o choro – o pai – e o riso – a mãe –, história da minha famiglia.


Era difícil, meu pai dizia, porque tinha se preparado para a ausência dos filhos. No entanto, quando ela chegou, quando minha irmã foi embora, ele não suportou. Eu sei o que é, Hugo, é saudade, ele repetia, tem sido difícil pra mim, eu sinto muita falta de vocês, eu sabia que ia ser assim, mas eu sinto saudade. E chorava. Era o choro contra o tempo, porque cada vez que ele chorava, a gente tinha que parar, prestar atenção, perguntar, mas, pai, o que está acontecendo, está tudo bem. No início ele desconversava. Só depois deu uma resposta. A cada vez que vinham as lágrimas, porém, lá estávamos nós, pai, está tudo bem. Não importava que horas o ônibus saía, tínhamos que ouvir, dizer, engole esse choro, homem-de-Deus, abraçar, repetir, estamos aqui, o que foi. É tão exibido que até pra chorar ele quer confete.


Minha irmã é enfermeira, tem tendência a patologizar as coisas – eu... bem, eu... deixa pra lá –, segundo Helena o choro era síndrome do ninho vazio. Segundo eu mesmo, a boa e velha forma de ganhar tempo do meu pai. A decisão de abandonar a moto, por outro lado, me fez acreditar que não havia choro que lhe desse crédito, de que meu pai, à luz da fragilidade do corpo afetado por um remédio para o colesterol, e mesmo recuperado disso, entendeu seu limite. Ele não conseguiu enrolar, contar uma história sobre um almoço em 1967, chorar e desconversar. Como qualquer um, o tempo todo, entretanto, francamente, meu pai está dizendo adeus.


"Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água.
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos 
nunca tem sono..."

Sono das Águas

Magma
João Guimarães Rosa.



terça-feira, 14 de junho de 2016

Samuel chorando

. . Por Caio Moretto, com 2 comentários

Samuel aprendeu a falar o próprio nome. Começou com um “El”, mas logo evoluiu para “Sai’el”. Que abstração potente é isso poder falar de si mesmo. Em pouco tempo ele já estava nos avisando de suas próprias atividades (“Sai’el cocozim”, “Sai’el não té naná”) e até de suas próprias sensações (“Sai’el tá fio”, “Sai’el sede").

Uma noite colocamos Samuel no berço, mas ele não quis dormir e começou a gritar de seu quarto: "Sai’el cholando! Sai’el cholando!". Rachamos o bico.

A representação tem suas ciladas. Chorar certamente não é o mesmo que descrever o choro. Mas acho que seria ingênuo acreditar que é "coisa de criança". Dizer "eu te amo", por exemplo, ou um simples "tchau, abraços!" é tão diferente assim?

Passei o dia pensando nisso. Nessa imagem que criamos de nós mesmos, que, muitas vezes, no automático, na repetição, no virtual, vai ressecando, vai substituindo a potência dinâmica que somos nós e vai nos facebookiando nesse simulacro estático que nós usamos para nos descrever e até pensar em nós mesmos. Penso que definitivamente não deve ser coisa de criança. Talvez até o oposto. Imagino que seja o Samuel crescendo. Fico um pouco passado. Venho escrever.

No dia seguinte a rotina se repete. Colocamos o Samuel para dormir e falo "Boa noite, Muca, um beijo". O Samuel não hesita: junta os lábios e "smack!".

Ufa! Posso dormir tranquilo!

quarta-feira, 30 de março de 2016

tem uma coisa

. . Por Unknown, com 0 comentários


Se tem uma coisa que não sou é: eu não sou obrigado.
Estava eu ontem à tarde indo à natação quando, no entorno do hospital, visualizei quatro jovenzinhos com coletes alaranjados e de pranchetinhas em mãos. O pânico me invadiu.
Devem ser do Greenpeace, do projeto Tamar, imaginei. Poderiam ser os Cavaleiros Templários da IV Internacional, não importa, eu tremia. Tentei atravessar a rua, mas meu horóscopo ontem estava péssimo, obscuro, tive receio de morrer atropelado e decidi seguir pela mesma calçada.
Já fiz muita coisa errada na vida, mas nunca atrapalhei o dia e o caminho de ninguém, de um desconhecido pela rua, pra pedir assinatura e dinheiro pra salvar as baleias, impedir o aquecimento global ou construir um playground pras crianças do bairro. Se dependesse da minha firma e do meu surrado dinheirinho, a extinção dos ursos pandas já teria acontecido, a Índia viraria o Saara. Não entra no meu caminho, mano, não atrasa o meu rolê pra me lembrar que a vida, as pessoas e o mundo são um absurdo e completo sem sentido, faz favor.
Poucos metros faltavam e um dos jovenzinhos de colete e prancheta virou-se pra mim abrindo os braços, dizendo, olha quem vem lá. Nem começou abril, um calor ignorante, as pessoas discutindo política como se estivessem na Guerra Fria, a política institucional às claras de tão sombria, sem dúvida regida pela Salvador Dalí, e vou terminar o dia preso por homicídio, pensei. O menino se aproximou, me felicitando. Meu querido, disse ele. Como vai, querido, perguntou. Demos as mãos, e a cara que eu fiz, imagino, foi a minha melhor pior cara. Ele me deixou passar.
Mano, querido? Veja só, na minha gramática, vem de querer. Mano, sequer o ensinamento do filme do Batman você pegou: não é o que você diz, mas o que você faz que te torna algo pras pessoas. Mano, cê me liga? Mano, cê me escreve? Cê me procura com saudades, mano? Mano, eu te devo uma cerveja? Cê dividiu teu sonho de valsa comigo, mano? Te dei uma bronca porque cê fez o que eu disse pra não fazer e ainda assim cuidei de você depois daquele porre, mano? Não, né. 

Então, faz favor, vai salvar as baleias y hacer la revolución, só não me chama de querido, mano, que eu não sou obrigado.


segunda-feira, 7 de março de 2016

Era Pavlov russo?

. . Por Thiago Aoki, com 0 comentários


- A vida é tão lógica como um gato: às vezes dá carinho porque quer comida; às vezes dá carinho mesmo sem querer comida; às vezes - muitas vezes, aliás - sequer dá carinho. Não vale a pena buscar coerência ou explicações.

- Pois é, e depois fica aqueles caras nos programas de televisão: “o gato é um felino caçador, por isso coloque a água longe da ração pra ele imaginar que está cumprindo um trajeto para o rio após a caça e blá blá blá”. E o gato nem aí pra nada disso, apenas puto de ter que andar da lavanderia até o corredor só pra tomar uma água...

- Dá vontade de pegar o cara que disse isso, convidar pra almoçar, colocar o prato com comida na mesa da sala e o copo de refrigerante no criado-mudo do quarto.

- Sim, e um cardápio bem apimentado de preferência... Mas o que isso tem a ver com a vida, tá dizendo que ela é fofinha, comilona, preguiçosa e dorme engraçada, tipo um gato?

- O que quis dizer é que na vida, quando você acha que encontrou um sentido prático, ela se comporta como um gato: danem-se os humanos, eu ajo como eu quero, não busque em mim nexos e linearidades.

- Nossa, que complicação, era mais fácil você dizer que a vida não tem lógica alguma, então.

- Ou que tentar entender racionalmente a vida seja tão improdutivo quanto tentar classificar como causa-efeito as ações de um bichano qualquer. Provavelmente Pavlov não teria sucesso se tivesse feito a experiência com um gato.

- Pavlov?

- Isso, aquele cientista russo que fez o cachorro salivar com um sino.

- Com um sino?

- É, ele fez o cachorro associar o sino com comida. Então quando o cão ouvia um sino ele começava a salivar.

- Por que diabos alguém faria isso com um cachorro? Coitado...

- Dizem que ele foi importante pra entender como nosso cérebro funciona, ou como nosso comportamento pode ser induzido de acordo com as situações.

- Ou manipulado... Dane-se, coitado do cachorro!

- É, dá dó... Pelo menos o Skinner fez com ratos.

- Fez o que?

- As experiências sobre o comportamento. Ele induzia os ratos a fazerem coisas como apertar uma barra pra ganhar comida.

- Coitado dos ratinhos!

- E depois ainda ele ficava reforçando o comportamento com estímulos ou então punindo para que eles deixassem de se comportar daquela maneira. Aquela coisa de reforço positivo, reforço negativo...

- Puta que pariu, que obsessão com isso...

- Com isso o que?

- Isso de querer controlar como todo mundo se comporta. Estimular, punir, reforçar...

- Mas olha que máximo, pensar que todos nossos atos são de alguma maneira induzidos por um monte de fatores inconscientes? Isso significa que nas pequenas coisas que fazemos podemos estar expondo um monte de coisas sobre nós mesmos que a gente mesmo não se dá conta. Acho isso incrível...

- Sim... Você, por exemplo... Ressaltou que o Pavlov era russo, mas não disse que o Skinner era americano...

- Que que tem?

- Oras, esses milhares de fatores inconscientes fizeram com que você dissesse que um era russo e omitisse que o outro era americano. Isso informa sobre você, sobre seus gostos, suas influências. Provavelmente você associa a Rússia a algo ruim, controladora, totalitária e considera os Estados Unidos o lugar da liberdade, dos direitos individuais...

- Ah, tá de brincadeira...

- É sério.. Esse seu, digamos... lapso... deve ter a ver com um monte de coisa: sua adoração por fast food, o modo como você odeia os filmes russos, seu vício por séries estadunidenses, sua paixão pelo Nirvana na adolescência, aquela professora que você odiava, Elvina Nikolaiev, você vive falando nela...

- Nossa, sério mesmo... Nunca ouvi tanta besteira... Sem falar que a dona Elvina - nem me lembre dela! - tinha descendência chechena, não russa...

- Mas na época da União Soviética era a mesma coisa... Mas enfim, fato é que você tem uma quedinha pelos ianques e um rancorzinho dos russos...

- Não diga besteira...

- Não sou eu que estou dizendo, é seu comportamento, as palavras que você escolheu... Os fatores inconscientes... Confessa, vai...

- Confessar o que? Nossa, sério mesmo que estou ainda dando corda pra essa sua teoria estúpida?!

- Não precisa negar, é normal ser imperialista. Tenho até amigos que são...

- Vai se ferrar! Aliás, como raios você sabe que o Skinner é americano se você nem o conhecia?!

- Não sabia, na verdade... Deduzi quando você ressaltou que o outro era russo... É o famoso pensamento binário... A gente tende a classificar o mundo em duas categorias: belo-feio, certo-errado, esquerda-direita, mulher-homem, ímpar-bar, russos-americanos... Logo...

- Logo?! Logo o que?! Ele podia ser afegão, dinamarquês, australiano, sírio, alemão...

- Mas o que ele é afinal?

- Americano, mas isso não quer dizer que...

- Rá! Não disse?! Logo, minha teoria estava certa.

- Logo nada! Logo o que você diz não tem lógica alguma!

- Tipo a vida?

- Tipo os gatos.

- Tipo os cientistas.

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